INTRIGA ALDEÃ | Adília Lopes

Intriga Internacional,Hitchcock



INTRIGA ALDEÃ


(a propósito de 10 de Junho)


Nunca fui para a cama com um português. Nem sequer alguma vez beijei na boca um português. Os portugueses são tão feios. Sobretudo os intelectuais. Não têm sex-appeal. São uma negação para coisas eróticas.
Já viram a "Intriga Internacional" do Hitchcock? A cena de sedução no comboio (e o sexo no comboio) nunca poderia ser protagonizada por um casal português. Antes de ir para a cama com Eva Marie Saint, Cary Grant tinha de lhe perguntar se o Saint do apelido dela era o mesmo de Saint-John Perse. E Eva Marie Saint tinha de ver o pergaminho a atestar a inteligência de Cary Grant, ou seja, mais importante que a análise à Sida, o diploma de Ph. D Harvard. Havia de se certificar, já que há Roma na Austrália e Paris no Texas, se Harvard não seria em Vila Pouca de Aguiar. Depois de se certificarem que o Saint era o mesmo e a Harvard a mesma (os portugueses precisam de preliminares muito elaborados e muito demorados), iam para a cama. Mas os portugueses saem do cinema antes de o filme acabar e atrasados à missa, ou seja, praticam o coito interrompido e sofrem de ejaculação precoce.
Falo de intelectuais, de burgueses e de aristocratas. Não conheço nenhum operário nem nenhum camponês. A pessoa mais parecida com um membro do proletariado que conheci foi a criada cá de casa, a Maria Arminda Duarte da Costa, que quis assassinar a minha tia-avó Paulina Queirós Plantier Martins, por esta ter descoberto que ela roubava.
Lembro-me de duas físicas hoje encartadas, minhas colegas da Faculdade de Ciências, "mas tu és Plantier?", subi imenso na estima delas por ser Plantier. É que só se vê que sou Lopes. E Adília. Também sou Lorena Queirós. Os Lorena Queirós foram miguelistas e perderam a fortuna com a guerra civil. Também eu me hei-de pôr a chorar à porta do Estado a pedir uma indemnização por ser uma espoliada da guerra civil. Ou então, como os nossos agricultores, vou dizer que deitei no papelão os meus poemas inéditos (como eles fazem com a pêra rocha) e que não escrevo poemas porque houve um terramoto em minha e um tsunami encharcou-me a cabeça. É verdade, a tia Paulina fazia cocó no chão e os salpicas de cocó sujaram as capas dos livros do Marcel Proust.
As físicas hoje encartadas eram assim: uma era Maria Ana e ficava ofendida se alguém insinuava que ela era Mariana, a outra era Baptista e ai de quem lhe tirasse o p de Baptista. Eram umas estúpidas.
"Transforma-se o amador na coisa amada” é uma paneleirice. Gosto que eu seja eu e que tu sejas tu e ainda bem que eu não sou tu e que tu não és eu. Bons textos em português são os primeiros: o testamento de Afonso II e a notícia de torto. O resto é paisagem.
Doutorado por Harvard, o Cary Grant português regressa a Vila Pouca de Aguiar. É saloio como o carteiro de "Há festa na aldeia" de Tati que distribui as cartas sem desmontar da bicicleta, muito depressa sempre a apregoar "comme en amérique". Eu tenho horror à intelligentzia. portuguesa, sobretudo aos filhos da intelligentzia . A Ana Sílvia Abelaira, que conheci com dez anos, e o Miguel que conheci com doze anos, trataram-me não abaixo de cão, mas abaixo de cagalhão de cão. Só porque eu não ando com um letreiro ao pescoço a dizer que sou Plantier.
Intelectuais portugueses, não obrigada. Lembro-me com gosto de um rapaz da construção civil que me disse "Tem uns olhos tão queridos" e de dois motoristas de táx com quem gostei de conversar. Eles nunca leram o Wingenstein? Eu também não. É claro nunca me perguntaram se o meu nome Lopes é o do Fernão Lopes ou o do Carlos Lopes.

Adília Lopes
revista 365, número 4, julho de 1998

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