A visita Real


                                                                                                                                  Fevereiro 1872

Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O facto em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História tranquila.
No que, porém, as opiniões radicalmente divergem - é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português.
O "Diário de Notícias" diz que o Imperador foi à mansão do Sr. Herculano.
O "Diário Popular", ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente que... O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao Tugúrio de Herculano; (ainda que linhas depois se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na Tebaida do ilustre historiador que...)
Uma correspondência para um jornal do Porto afiança que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc.
Outra vem todavia que sustenta que o Imperador foi ao abrigo desse que...
Alguns jornais de Lisboa, por seu turno, ensinam que Sua Majestade foi ao Albergue daquele que...
Outros, contudo, sustentam que Sua Majestade foi à solidão do eminente vulto que...
E um último mantém que o imperante foi ao exílio do venerando cidadão que...
Ora, no meio disto, uma coisa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente a casa do Sr. Alexandre Herculano!

Eça de Queirós, in Uma Campanha Alegre 

Queirós, Eça de, Uma Campanha Alegre , Circulo de Leitores, 1980.

Alexandre Herculano






"Foi o iniciador do romance histórico em Portugal. O imaginário medieval presente nas suas obras, com personagens semelhantes às de filmes e séries televisivas que encantam a juventude, seria o condimento bastante para cativar os adolescentes ávidos de aventuras.
Contudo, 200 anos volvidos após o seu nascimento - que se comemora hoje -, Alexandre Herculano é um desconhecido para a grande maioria dos estudantes portugueses, inclusive, para os que concluem a área de Humanísticas no Ensino Secundário.
Vozes críticas dos currículos da disciplina de Português lamentam que o estudo da literatura tenha sucumbido à relevância dada à avalanche de textos informativos e pragmáticos e que o texto literário passasse a ser encarado como mero tipo de texto." Fernando Basto, Jornal de Notícias


O ensino português desconsidera os autores do século XIX?
O ensino português é uma caricatura obscena, pelo menos no plano da língua e da cultura. Os principais autores do século XIX, bem como os dos séculos anteriores, foram postos de lado por meia dúzia de irresponsáveis que tiveram alçada sobre os programas escolares durante muito tempo. Preferiram pôr os meninos a lerem bulas de medicamentos, relatórios técnicos, ou coisas desse género. [Vasco Graça Moura, Jornal de Notícias]

Catarina Eufémia, de Sophia de Mello Breyner Andersen

Catarina Eufémia


O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método obíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste
E a busca da justiça continua

Sophia de Mello Breyner Andersen





Os filhos de Édipo [Expresso, 27 de Março] por Valdemar Cruz

 por Valdemar Cruz
[Expresso, 27 de Março]


Nunca sobe à cratera. Creonte nunca desde aos subterrâneos. Antígona nunca desiste, quando o mais fácil seria ceder. Creonte percebe tarde de mais a dimensão da tragédia criada pelo labirinto da sua intransigência. Antígona é mulher e clama o direito de dizer ‘não’ num tempo governado por homens. Creonte é um tirano cheio de dúvidas. Antígona não tem medo de morrer. Creonte desejaria ser tragado pelo vulcão que no cenário se impõe como metáfora maior do turbilhão contido neste conflito feito de contradições, mágoas e ressentimentos. Num tempo tão despojado de valores éticos, políticos ou morais, não deixa de alguma nobreza de carácter”. Não era uma anarquia organizada, materializada no empunhar de bandeiras pretas, “mas anarquia no sentido de contra a corrente”, sublinha Nuno Carinhas. De resto, foi nesta peça que pela primeira vez, através de Sófocles, a palavra ‘anarquia’ foi inscrita. Na Grécia antiga, as mulheres não tinham um papel político. Até por isso, Nuno não quis apresentar um olhar feminino ou feminista, mas interessa-lhe tentar perceber “como é que os gregos reagiriam quando assistiam à representação, sabendo que por trás de uma máscara estava um homem que representava uma mulher”. Com um texto muito marcado pela importância dos valores, o encenador fez questão de chamar a atenção dos actores para a necessidade de “nunca abandonarem a espessura da argumentação, fossem homens ou mulheres, guardas ou reis”. Há ali uma permanente reflexão sobre tudo e de forma tão elaborada que ultrapassa a dimensão específica de cada uma das personagens. Funcionam como coro de ideias, e é como “se a peça fosse construída como uma única cabeça que vemos por dentro e à volta”.
Quando a cena se abre por completo, depois de uma espécie de prólogo com Antígona e a irmã, Ismena, que nos apresenta todo o drama em construção, surge Creonte no cimo de uma cratera, formada por uma estrutura concêntrica, numa espécie de anfiteatro ao contrário. Durante longos minutos, e devido ao efeito de luz, não se percebe qual a matéria, qual a textura daquela cratera de enorme beleza e com uma dimensão visual muito táctil. Por fim, revela-se a cortiça, um material já proposto por Carinhas para a cenografia de “Cabelo Branco É Saudade”. Agora apeteceu-lhe voltar àquele material de “forma mais abundante e mais determinante. Ao pensar naquela cratera, naquela paisagem vulcânica, achei que a cortiça tinha já na sua textura esses veios, como de lava quase gelada que tinha ficado ali esculpida”. Num trabalho ancorado numa forte metáfora do poder e das hierarquias, impõe-se a presença do coro como se fora uma outra personagem. Não apenas pelo modo como todos estão tão austeramente vestidos com casacos compridos. Não apenas por, apesar do conjunto, manterem uma forte individualidade. Mas antes de tudo por surgirem como personagens actuantes. Como diz Nuno, “são uma espécie de espelho nosso”. Estão em cena a presenciar de forma activa o que se passa e, por vezes, a condicionar o que se passa. ser surpreendente a actualidade da proposta de Nuno Carinhas, de regresso a Sófocles e à coragem de uma mulher, Antígona, disposta a sacrificar a própria vida em nome de um princípio. A revolta da filha de Édipo contra a decisão de Creonte de proibir o enterro de seu irmão Polinice, por ter lutado contra a cidade de Tebas, resultava então numa tragédia pejada de mortes. 2500 anos depois, a desgraça reside sobretudo na constatação de que aquele rosto, aquela mulher, aquela capacidade de enfrentar o poder, aquela disponibilidade para defender uma causa é cada vez mais necessária, mas está cada vez mais moribunda.

  por Valdemar Cruz
[Expresso, 27 de Março]

Nomes da nossa Terra | Miguel Esteves Cardoso

"Um dos mais notáveis documentos da nossa cultura é o Dicionário Corográfico de Portugal, de A.C. Amaral Frazão. Contém cerca de 1000 nomes de lugares, aldeias, vilas e cidades portuguesas. Ao ler os nomes de alguns sítios, (...) compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses.

Imagine-se o impacto de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar. Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina, de onde é?", e a menina dizia: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).

É evidente que, na nossa cultura, existe o trauma de «terra». Ninguém é do Porto ou de Lisboa. Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer rir.

Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como originário de Filha Boa (Torres Vedras). Verá que não é bem atendido.

Há terras com nomes que parecem títulos de livros de Eugénio de Andrade, como Ferido de Água (concelho de Paredes). Há saldos de todas as espécies. Toda a gente conhece o Vale das Pegas (Albufeira) e a Venda das Raparigas (Alcobaça), mas há lugares mais especializados como a Venda da Luísa (Condeixa-a-Nova) e ainda lugares lamrntavelmente racistas, como seja a infame Venda dos Pretos, em Leiria. Com nomes destes, nunca iremos a lado nenhum.

Não há limites. Há um lugar chamado Cabrão, no concelho de Ponte de Lima. Começo assim para não começar a falar logo em Picha, vergonha eterna da freguesia e concelho de Pedrógão Grande. Picha tem as casas mais baratas do país, só porque os potenciais residentes são incapazes de enfrentar uma morada tão rasca. Não é um nome que torne distinto um cartão de visita.

Se fosse um caso isolado, passaria, mas infelizmente não é. De facto, para além de Picha, Portugal conta igualmente com dois lugarejos denominados Venda da Gaita. Uma fica em Almoster e outra em Tomar.

Recomecemos a nossa viagem pela nossa terra. Que dizer de um país onde é possível ir de Cabeça Perdida (em Portimão) para a Cornalheira (em Meda)?

Devia haver uma Comissão para a Decência Onomástica, que tratasse nomes como Casal do Gorta Rabos (Alcobaça), Mal Lavado (Odemira), Casal da Porcaria (Leiria) e Ripanço (Proença-a-Nova).

Qual o construtor civil que se sente tentado a empreender a construção de novos fogos em lugares chamados São Paio da Farinha Podre (Penacova), Casal do Esborrachado (Almeirim), Triste Feia (Leiria), Parola (Mafra) ou Farta-Vacas (Lagos)?

No capítulo da ciência, há nomes que fazem sorrir. Mesmo assim, para quem mora neles, devem ser muito maçadores. Há em Chaves um Raio-X e, como se não bastasse, um Entroncamento do Raio-X. Em Alcobaça, em contrapartida, há uma (mais portuguesa) Engenhoca. Continua com Telégrafo (em Tomar) e Arquitecto (em Mafra). Em Grândola, há uma Aldeia do Futuro. Em que outro país europeu é possível sair um dia de automóvel e fazer o trajecto Raio-X, Engenhoca, Telégrafo, Arquitecto, Aldeia do Futuro??!!

Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso que vá da Fome Agua à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água (Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do Bogadouro (Amarante), depois de ter parado para fazer um chi-chi em Alçáperna (Lousã). E basta! " in Os Meus Problemas

Pede o desejo, Dama, que vos veja, Camões

(imagem de Paulo Pimenta)


Pede o desejo, Dama, que vos veja;
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Camões

Nesta brisa quase suave, Filipa Leal


(escolhemos esta imagem do quadro Afinidades Electivas de Magritte pois a capa de Talvez os Lírios Compreendam trabalha esta imagem. Afinidades Electivas é também o título de um livro de Goethe)

Nesta brisa quase suave
de plantas já anoitecidas
quase te toco entre as regas,
e entristeço.
A tua ausência é tão real
como os vastos campos de girassóis
secos, envelhecidos, quase mortos.
Alugo a voz e a expressão
a par de todos os espaços
deste lugar que se inicia.
Tudo isto é simples:
tenho o coração desarrumado.
Vem.

Filipa Leal,  in Talvez os Lírios Compreendam

Fora de Portas


A gerência do Cercarte decidiu criar um espaço paralelo dedicado ao Teatro.
Basta clicar na imagem...

O Deus da Matança

Posted by Picasa

O Deus da Matança, 19 de Março

Posted by Picasa

Dia 21 de Abril : Missão Coimbra / Alcobaça

Na igreja abacial de santa Maria de Alcobaça
[...]
Os que em vida se amaram para sempre se juntaram
No cruzeiro de pedra poisam hoje os dois moimentos
Dois poemas em pedra onde em quarenta e seis edículas
Se narra
A história desse amor às vezes alegria quase sempre dor
amor pétreo de Pedro que prepara para Inês esse alvo leito
Em pedra
[...]

Ruy Belo, in A Margem da Alegria

Antígona, de António Pedro

3.º Velho: [Esta é] a tragédia de quem se recusa a obedecer à lei em nome duma lei que é superior aos homens.
2.º Velho: Que é superior às circunstâncias em que os homens fazem certas leis.
1.º Velho: A tragédia da liberdade.  Antígona, de António Pedro


Dia 16 de Abril vamos ver...

Nuno M Cardoso dirige – numa acção de “formação em acto”, que congregará actores da Casa e alunos do Balleteatro Escola Profissional – uma leitura encenada da “Antígona” de António Pedro, devolvendo-a ao lugar da sua estreia em 1954, no então denominado São João Cine. Sobre esta sua “pirandelliana” revisão da matéria dada, adverte-nos o autor: “Nesta glosa, a Grécia é apenas um pretexto cénico. A acção passa-se, realmente, no palco em que for representada, isto é: na imaginação de cada um”.

Projecto Educativo do TNSJ

Ontem, o 10.ºE (Literatura Portuguesa) recebeu Luísa Portal, Relações Públicas do TNSJ, a fim de pensar na exposição final. Dia 15 de Maio já está marcado na nossa agenda!
 Depois da conversa - e do aguçar de curiosidade para a Antígona de Sófocles e de António Pedro - fomos até à EBI/JI da Corujeira. Apesar de se tratar de uma visita surpresa, as Corujinhas estiveram muito bem (como sempre!).


O Teatro Nacional São João, no âmbito do seu projecto educativo, desenvolve ao longo da temporada 2009/10, o projecto As Escolas no Teatro




Projecto de interacção dos universos escolar e teatral, pretende aprofundar o olhar e intensificar a experiência de fruição dos espectáculos, criando espectadores mais conhecedores, mais activos, mais críticos. Ao longo de toda a temporada, o TNSJ propõe às comunidades escolares que invistam a experiência adquirida com a frequência dos espectáculos na realização de projectos de expressão plástica ou escrita, que serão depois objecto de uma exposição a realizar nos meses de Maio e Junho. Todo o projecto é desenvolvido segundo uma matriz de responsabilização e autonomia de projecto por parte dos participantes. Pretende-se, antes de mais, estimular a utilização do TNSJ enquanto instrumento de enriquecimento das práticas pedagógicas desenvolvidas em cada escola. Preparar em conjunto a vinda ao Teatro, utilizando os meios que o TNSJ coloca à disposição (visitas ao Teatro, conversas com artistas, espólio do Centro de Documentação) e partindo de um princípio de posicionamento activo perante os objectos artísticos experimentados: procuramos um paradigma que trata todos como agentes maiores de uma relação. (daqui)

O riso e o brilho | Joana Vasconcelos

[A propósito de Sem Rede, primeira exposição antológica da obra de Joana Vasconcelos]

O riso e o brilho,
REUNIÃO ALARGADA DA OBRA DE UMA ARTISTA PORTUGUESA INTERNACIONALIZADA: HUMOR E SEDUÇÃO NUM RETRATO DO PAÍS

O PERCURSO artístico de Joana Vasconcelos nos últimos 15 anos pode bem aspirar a transformar-se num caso de estudo no âmbito da sociologia da cultura. Uma jovem artista portuguesa com pouco acolhimento entre os comissários locais rompe o carácter periférico do país e cria uma carreira internacional bem alicerçada em França, em Espanha e no Brasil. Que nada disto se tenha feito com o apoio do Estado nem das elites especializadas (qualquer artista que queira ser levado a sério deve abster-se de confessar que gosta do trabalho dela) torna o caso ainda mais excêntrico. Na verdade, Joana Vasconcelos é popular como só Paula Rego o consegue ser entre os nossos artistas visuais e tem hoje um estatuto mediático comparável a certos músicos e actores de cinema locais.
Como foi isto possível? Uma visita ao Museu Colecção Berardo ajuda a perceber o caso, e não apenas pelas obras que compõem a antológica “Sem Rede”. O que as muitas pessoas de todas as idades que lá vão encontram é um conjunto de esculturas e instalações que aliam quase sempre de modo muito hábil um forte apelo sensorial (o primeiro nível de leitura da obra, que atrai por exemplo as crianças), um denso enraizamento na cultura popular rural e urbana que gera um efeito de empatia imediato e uma capacidade de criar comentários sobre a realidade material e mental envolvente.

Nas melhores obras de Joana Vasconcelos, o lúdico, o glamour e o político combinam-se de forma engenhosa, evitando a alienação mas também a auto-indulgência do artista que pensa poder ser socialmente relevante só porque faz grandes declarações críticas e ideológicas através da sua obra. Esta mostra alargada é, pois, uma oportunidade de verificar um sentido de eficácia que atravessa trabalhos que sinalizam e comentam diferentes aspectos da realidade social. Pode ser a condição da mulher na ácida sedução de “A Noiva” (2001-2005), um aparatoso lustre feito com tampões menstruais; “Marilyn” (2009), um sapato de luxo feito com panelas e tampas; ou o seu contrário, “Burka” (2002), uma referência à condição da mulher islâmica. Pode abordar-se o mundo do showbiz e da moda, como na excelente “Passerelle” (2005), em que cães em faiança se vão partindo uns aos outros na pressa de desfilarem, ou entrar no campo do religioso e do comércio que o rodeia (“www.fatimashop” e “Fui às Compras”, 2002); abordar o consumo (“Luso Nike”, 2006) e a burocracia (“Airflow”, 2001); ou simplesmente criar imagens da neurose colectiva (“Sofá Aspirina”, 1997, ou “Cama Valium”, 1998).

Estas peças funcionam porque à sua concepção está subjacente um olhar sobre o mundo com diferentes níveis de aproximação. O efeito de sedução que as percorre vem precisamente dessa percepção de que há um caminho muito curto entre o belo e o banal, entre o exaltante e o repugnante, entre o ético e o frívolo. Isto falha quando há um desequilíbrio entre os factores que fazem a obra. E isso tem acontecido, por vezes, nos tempos mais recentes. A escala dos projectos vem-se tornando cada vez mais ambiciosa e mais literal nas referências convocadas. Nesse particular, a obra pagou a sua popularidade. Os tão insensados “Corações Independentes”, a intervenção na Ponte Dom Luís I e na Torre de Belém ou o recentíssimo labirinto de flores artificiais que se inclui nesta exposição podem ser exímios manuais de sedução do espectador, mas o seu poder de interpelação esgota-se no próprio artifício que os caracteriza. Esse é um risco que esta obra corre. A perda de uma ironia certeira em favor do gigantismo.
eja como for, é preciso dizer-se que ir ao Museu Colecção Berardo por estes dias é, globalmente, encontrar um corpo de trabalho capaz de interpelar a nossa realidade sociocultural através da arte. E isso não é pouca coisa.

* 13 Mar 2010
* Expresso Actual
* Texto de Celso Martins

Constroem para destruir | Adília Lopes


Depois de ler isto...

Constroem
para destruir

Constroem
a destruição

As obras faraónicas
fazem-se
com a escravidão

Mas as pessoas
valem mais
do que as pirâmides

As obras faraónicas
fazem-se
com a morte

Adília Lopes, Le vitrail de la nuit

Um toldo vermelho| Joaquim Manuel Magalhães

A tentação do silêncio

O conceito de recristalização, a lenta transformação geológica dos minerais, haurido na esfera da mineralogia, é profícuo quando pensamos na obra de Magalhães. Trata-se de uma metáfora operacional, não só no que concerne ao cuidado na manutenção/transformação da obra já publicada,  mas também na reactualização dos temas e formas de os tratar.

Em  Um Toldo Vermelho, Joaquim Manuel Magalhães revisita-se e reescreve-se, uma vez mais, no sentido da exclusão. O que sobra  é resultado de uma violenta depuração.  
Magalhães  não só rasura e reescreve versos e poemas inteiros, como altera a ordem de apresentação dos textos. Neste sentido, Um Toldo Vermelho, mais do que um exercício de linguagem, é  a reconfiguração de uma vida.
Nada de novo, já em 1988, Graça Capinha notava, a propósito de Alguns Livros Reunidos:

«Reduzem-se versos, estrofes, poemas. Passos há que desaparecem na sua totalidade. Outros são agora interrompidos por novos espaços entre estrofes» (Capinha, 1988:195).

A diferença é que agora, a nota final, assume um tom testamentário:

"Este volume constituí a minha obra poética até 2001, a que acrescento um poema publicado em 2005.Exclui e substitui toda a a anterior."

A título de exemplo veja o que fica e o que muda neste «Inverno em Vila Real»:

Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada indiferente.
O meu tumulto ensombra-te.

Um pombo protegido no beiral,
acabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-se
no compêndio e numa bolsa a letra
do nosso nome, de maneira a desenhar
uma única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal ali se convinha, se
faltava à aula na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.

O foro furtivo já desagregava.
Nem eu te quereria
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem da neve
e o que for teu vier pela avenida
em direcção à confeitaria
algo do desaparecimento, quem sabe lembrará.

Joaquim Manuel Magalhães, Um Toldo Vermelho (2010)




Era de inverno, em Vila Real. A neve
cobria as ruas que levavam ao liceu.
Dentro da confeitaria, as luvas de cabedal
no tampo do vidro, o vapor da respiração
ligava-nos entre as conversas de mesa indiferentes.
E querias olhar para mais dentro de mim.
Os pombos escondidos nos beirais tapavam
a cabeça na plumagem de chumbo, cor do céu.

Calados, afeitos ao silêncio, enlaçámos
em cada um dos nossos livros a primeira letra
dos nossos nomes, de modo a desenharem
uma única letra que não havia em alfabeto nenhum.
Que bem que estávamos tão mal ali sentados,
a faltar às aulas, nessa primeira vez
em que nos acontecia, sem sabermos, um amor.

Tu não ias adivinhar as leis secretas
que já nos separavam. Tu não podias
lutar na via de sangue da minha vida.
Mas sempre que tombar neve em Vila Real
e desceres a avenida a caminho do café
de alguma destas coisas, quem sabe, te hás-de lembrar.

Joaquim Manuel Magalhães, Segredos, Sebes e Aluviões (1988)


*****************


"O poeta pode dar-se ao luxo de burilar significativamente o poema, reduzindo-o à sua essência, quase como se de um resumo se tratasse - uma paráfrase, ainda poética, - porque sabe que conhecemos de antemão o contexto primeiro do mesmo. Porém, lê-los pela ordem inversa resulta numa experiência de leitura completamente diferente.

E poderíamos viver só com a segunda versão? Poder... podíamos. Mas não era a mesma coisa
." [João Luís Barreto Guimarães]