Rui Manuel Amaral & Adília Lopes [associação muito livre]


O que os peixes decidiram fazer
Rui Manuel Amaral

 
Todos os dias, um pescador lançava as redes, plaf, à água. Longas horas no meio do mar, lançando as redes, plaf, plaf, plaf, com gestos de semeador apaixonado. Os peixes, esses, aguardavam alegre e pacientemente a vez de serem pescados, borbulhando intermináveis declarações de amor ao pescador.
O caso é que, por uma sucessão de intermináveis azares e infortúnios, pescador e peixes falhavam sempre os seus encontros. Os peixes corriam como loucos, de olhos esbugalhados, atrás do pescador e este sulcava incansavelmente as ondas no encalço daqueles. Mas parecia que quanto mais insistiam neste assíduo labor, mais excitavam a crueldade dos elementos. E, dia após dia, semana após semana, mês após mês, as redes permaneciam vazias.
Ora, cansados de tanta correria para nada, os peixes decidiram acabar com aquilo. “Chegou o momento de lançarmos as nossas redes”, disseram os peixes que tinham barbatanas vermelhas. “Chegou o momento de recuperarmos o tempo perdido”, disseram os que tinham barbatanas azuis. E assim foi. Os peixes lançaram as suas redes e pescaram sem dificuldade o pescador. Em poucos segundos, o homem evaporou-se da superfície das águas como se evapora uma aparição da Virgem. (Doutor Avalanche, pag, 33)


A BIFURCAÇÃO SUCESSIVA , de Adília Lopes

Divido a minha vida
em duas partes
uma em que tinha orelhas
e não tinha brincos
uma em que já não tinha orelhas
e toda a gente me dava brincos
para me consolar de duas coisas
de não ter orelhas
e de não ter tido brincos
quando tinha orelhas
de todos nós assim era só eu
porque orelhas tinha duas

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